A companhia da literatura é perigosa,
tanto que eu, por vezes, a pessoas que aprecio não vejo motivos nenhuns para
lhes aplaudir que leiam muito e penetrem tanto nos livros, e o que lhes desejo
é o Bem, e qualquer um que tenha lido por exemplo Kafka conhece perfeitamente
«quanta angústia excessiva para nada» (como dizia Pessoa) há na literatura.
Como
diz Magris: «Kafka sabia perfeitamente que a literatura o afastava do
território da morte e permitia-lhe compreender a vida, mas deixando-o de fora.
Assim como lhe permitia compreender a grandeza do padre judeu, modelo de homem,
mas não lhe permitia precisamente sê-lo.»
Precisamente porque a literatura
nos permite compreender a vida, deixa-nos fora dela. É duro, mas às vezes é o
melhor que nos pode acontecer. A leitura, a escrita, buscam a vida, mas podem
perdê-la precisamente porque estão inteiramente concentradas na vida e na sua
própria busca.
Talvez seja a melancolia da tarde em que estou a escrever isto, mas a verdade é que estou a falar de um nó inextricável de bem e de mal, de luzes e sombras inerentes à leitura e à literatura. Tudo isto é duro, para quê nos enganarmos. Trata-se de uma dureza que, segundo Gombrowicz, a boa literatura possui como produto de um instinto de agudizar a vida espiritual. Há dias em que recomendaria ler aos meus piores inimigos.
Precisamente porque a
literatura nos permite compreender a vida, fala-nos do que pode ser mas também
do que podia ter sido. Às vezes não há nada mais distante da realidade do que a
literatura, que nos recorda a todo o momento que a vida é assim e o mundo foi
organizado assado, mas poderia ser de outra forma. Não há nada mais subversivo
que ela, que se ocupa de devolver-nos à verdadeira vida ao expor o que a vida
real e a História sufocam.
[Enrique Vila-Matas,
in 'O Mal de Montano']
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